Ademir Barros dos Santos
Nuno Rebocho
Cap. I
QUILOMBOS E QUILOMBOLAS
A presente investigação comprova o que já era conhecido: que Cabo Verde, tal como outros países africanos, teve os seus quilombos onde os escravos fugitivos se refugiavam e heroicamente resistiam à ocupação reinol: deve-se a António Correia e Silva a identificação de um desses quilombos, mas certamente outros se formaram. Os escravos tê-los-ão designado por djulangues, palavra oriunda da costa ocidental do continente – do mandinga. O medo que suscitaram na sociedade reinol criou a ideia que se poderia reproduzir em Cabo Verde o fenómeno havido no Brasil e aí referido como quilombos.
O esclavagismo engendrou uma indómita sede de liberdade e a fuga para espaços com alguma segurança face à repressão foi um dos modos como ela se manifestou. Tentamos com este trabalho identificar e descrever não só a sua história, mas também a sua forma de organização. Devido à natural falta de documentação comprovativa, deduzimos - dos poucos indícios existentes - o modo como evoluiu este processo importante da história cabo-verdiana, na esperança de que futuros trabalhos apresentem mais pormenores que, de uma vez, façam luz sobre esta matéria.
Para já, cuidamos que esta contribuição ajudará a inscrever a realidade dos quilombos cabo-verdianos nas cronologias que ensinam a história às gerações mais jovens, que a devem divulgar e defender sem preconceitos de qualquer espécie.
O que são quilombos
A palavra quilombo será de origem quimbundo (Angola) – kilombo – embora surja também no umbundo – ochilombo, e designava originalmente um lugar de pousio, cemitério, ligado à chamada religião vodu, segundo o professor Mário Henrique Simonsen. O investigador brasileiro Ademir Barros dos Santos, que se tem dedicado a estes temas, afirma que, em língua, bantu a raiz lombo se refere “indubitavelmente, ao ritual de circuncisão; ali, a palavra ochilombo ainda remete ao sangue desta iniciação que em outros idiomas de mesma raiz, como cokwe e quimbundu, é designada por termo completamente diferente: mukanda”(quilombos). De acordo com ele, o termo quilombo ganhou erradamente o significado de comunidades autónomas de escravos fugitivos.
Quilombolas idos ao Palácio do Planalto, Brasília |
Em todas as Américas há grupos semelhantes, porém, com nomes diferentes, de acordo com a região onde se desenvolveram: cimarrónes em muitos países de colonização espanhola, palenques em Cuba e Colômbia, cumbes na Venezuela e marroons na Jamaica, nas Guianas e nos Estados Unidos. Em Cuba, Jamaica, Panamá, como em Venezuela, Colômbia e outros países, designam-se de cimarrónes os animais domésticos que escaparam aos seus donos e deixaram por isto de estar domesticados. Por extensão, ganharam este nome os escravos que fugiram do cativeiro e recuperaram nos campos a sua liberdade. No México, como também em Cuba ou na Venezuela (onde também são referidos como cumbes) chamam-lhes palenques, nome de uma tribo maia possivelmente liderada por mulheres que souberam resistir aos invasores espanhóis. Na Jamaica, tal como no Suriname e no Haiti, são referidos como marrons ou maroons (que significa “castanho”), por serem de cor escura (negra) – o que indica a sua origem africana.
Os nómadas chamavam quilombos aos seus lugares de paragem e o termo passou a designar a própria paragem no deserto, o acampamento onde se realizava o comércio de cera ou de escravos. Como quer que seja, a palavra é proveniente dos povos de Angola que em muito contribuíram para a massa de escravos que confluíram para a América do Sul e para Cabo Verde. Em princípio, os resistentes nestes quilombos rejeitavam o cristianismo e tentariam recuperar práticas antigas herdadas de África, tanto mais que o clero estava deles ausente.
Zumbi, líder do Quilombo de Palmares |
Estudos genéticos têm revelado que a ancestralidade africana predomina na maioria dos quilombos, embora haja a presença de elementos de origem europeia e indígena nessas comunidades. Tal demonstra que os quilombos não foram povoados apenas por africanos, mas também por outras pessoas integradas nessas comunidades. Os estudos mostram que a ancestralidade dos quilombolas - sobretudo no Brasil - é bastante heterogénea, chegando a ser quase que exclusivamente africana em alguns casos, como no quilombo de Valongo, no Sul, enquanto noutros a ancestralidade europeia chega até a predominar, como no caso do quilombo do Mocambo, no Nordeste, que constitui uma exceção.
A maioria dos quilombos tinha existência efémera - uma vez descobertos, a repressão de que eram alvo ficava marcada pela violência da parte dos senhores de terras e de escravos, para se reapossarem dos fugitivos e punir exemplarmente alguns, querendo atemorizar os demais. Apesar de representarem uma resistência à escravidão, muitos quilombos contaram internamente com a escravidão. Esta prática levou alguns teóricos a interpretar a prática dos quilombos como um conservadorismo africano, com classes sociais existentes em África, como reis, generais e escravos.
Cap. II
O CASO DE CABO VERDE
• Quilombos em África
Os escravos, provenientes do continente africano (inicialmente da região dos Rios da Guiné), procuravam a liberdade, quando podiam, galgando as muralhas da cidade, construídas tanto para a proteger de ataques de corsários, como para impedir a escapada dos escravos (“fujões”, donde terá resultado a designação adotada pelos mandingas - “djon”, que significa escravo). Chegaram a Cabo Verde no séc. XV, trazidos pelos colonizadores europeus para trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar e de algodão por eles introduzidas e que requeriam mão-de-obra intensiva; com o algodão recolhido fabricava-se pano (panu di tera), cujos réditos por sua vez alimentavam a importação de escravos. Assim, esse contingente de escravos - que engendrava novos contingentes de escravos - convergiu para Ribeira Grande de Santiago e daqui para outros pontos da ilha de Santiago.
O sonho dos homens, e mulheres, deste modo submetidos, era o de recuperar a liberdade perdida. A fuga era um dos meios para obter essa liberdade. Ora, na fuga – que obrigou à construção de muralhas para a impedir em volta de Ribeira Grande (cujos restos ainda hoje são visíveis) - internavam-se em áreas de difícil acesso, tentando assim iludir a perseguição por parte dos grupos de caçadores de fujões, encontrando nesta fuga espaços com naturais condições de fácil defesa: deste modo, surgiram diversos núcleos de escravos libertos disseminados por serras e matagais do interior da ilha, cada vez mais afastados dos principais centros urbanos (Ribeira Grande, Praia, Alcatrazes) – nas áreas limítrofes do atual Município de Ribeira Grande de Santiago, confinando com Santa Catarina (antiga Santa Catarina do Mato), como é o caso da região de Belém-S. João Batista, em Mosquito Horta ou na zona de Pico Leão e de Piku Antónia (Pico de António Genovês) terão aparecido alguns dos primeiros locais de resistência, que mais tarde (a partir do séc. XVIII) foram identificados com quilombos.
Foram os reinóis, impressionados pelas insubordinações havidas no Brasil, que deram aos espaços governados por escravos rebeldes o nome de quilombos. Naturalmente que os escravos, sem acesso a fontes de informação, os batizaram com outros nomes – porventura djulangue, palavra que será derivado de djon, a ter em conta os indícios resultantes do facto de existirem localidades com este nome em Belém (no Município de Ribeira Grande de Santiago), em Boa Entrada (no de Santa Catarina de Santiago) e em Santa Cruz.
Caçadores de escravos "fujões" |
A fuga de escravos (a procura de liberdade) é quase tão velha como a própria escravatura: é um processo natural – segundo refere Kabengele Munanga (“O negro no Brasil de hoje”) - “o processo de aquilombamento existiu onde houve escravidão dos africanos e seus descendentes”. Recordemos que ela já se manifestou expressivamente no império romano (revolta de Espártaco 1). De certa forma, a fuga dos escravos (africanos) contribuiu para o povoamento do interior da ilha: é um dos vectores deste povoamento, complementar do progressivo internamento dos reinóis (europeus), que ali iam constituindo morgadios e capelas. A ocupação de todo o interior rural foi-se fazendo por este modo.
A organização dos quilombos
Mas só se pode falar na existência de quilombo quando existe uma organização mínima do agregado, embora ela pareça ser rudimentar não só quanto às formas de defesa, sociais ou culturais, ou como manifestações religiosas e lúdicas, a música e a dança, procurando reformular laços familiares perdidos por acção da escravatura. De facto, os quilombos sempre estiveram sujeitos a incursões do poder oficial, sendo por isto obrigados a organizar-se de forma a, além de subsistir económica e politicamente, disporem de recursos eficazes de defesa: tinham governo altamente centralizado, subordinando os mocambos (ou aldeias) em que, eventualmente, se subdividiam, embora os chefes locais participassem de decisões em forma de “congressos”, à semelhança do funcionamento do “conselho de anciãos” africano. Quer dizer: os quilombos sincretizaram modelos de organização genuinamente africanos com o que os escravos assim libertos puderam assimilar da sociedade reinol.
Dick Valkenburg (séc. XVIII) - Escravos dançando |
A sua economia seria de subsistência, procurando os seus integrantes encontrar modelos que satisfizessem as suas mais imediatas necessidades. Por conseguinte, centrava-se na agricultura – quase sempre nómada -, na criação de gado e, nalguns casos, na pesca. O trabalho e o produto daí obtido era socializado. É de admitir que, tal como se verificou no Brasil, os quilombos africanos tivessem recebido uma economia mais diversificada, recorrendo a alguma actividade extractiva e comercial (mercantilista) ou mesmo de tessitura.
A vida nos quilombos visava, na sua organização,
• aculturar os escravos recém libertos às práticas do quilombo, que consistiam em trabalho árduo para a subsistência da comunidade, já que muitos dos escravos libertos achavam que não teriam mais que trabalhar; e
• diferenciar os ex-escravos que chegavam aos quilombos pelos próprios meios (escravos fugidos, que se arriscavam até encontrar um quilombo) - sendo no trajeto perseguidos pelos antigos senhores e correndo o risco de serem capturados por outros escravistas -, daqueles que eram trazidos por incursões de resgates (escravos libertados por quilombolas que iam às fazendas e vilas para libertar escravos).
A origem dos quilombos
Segundo aponta Ademir Barros dos Santos (ob. cit), o estudo idiomático aponta para as origens dos quilombos, a saber: “há cerca de dois mil anos, os antepassados dos povos que, actualmente, falam idiomas bantu, iniciaram sua expansão, partindo do entorno do Golfo da Guiné em direcção ao sul e sudeste da África; o conhecimento da metalurgia facilitou esta expansão: provavelmente, utilizaram instrumentos de ferro para abrir caminho através da floresta equatorial. Neste ponto, há que recorrer ao mito, já que se trata de povos à época sem escrita, em que a tradição oral – com o que pode conter de imprecisões e lacunas – continua sendo, ainda actualmente, a grande fonte de informações sobre a chamada África Negra.
Escravos de origem africana trabalhando no Brasil |
“Um dia, durante a interdição, a rainha chama seus notáveis e chefes de linhagem e, colocando o bracelete que simboliza o poder em seu marido, o apresenta como novo chefe lunda; é evidente que o casamento da rainha com o estrangeiro, seguido por sua elevação a rei, causa descontentamento não só entre a família real: também algumas camadas da população recusam-se a aceitar o governo do forasteiro luba. Como consequência, Kinguli, irmão da rainha, leva seus simpatizantes para oeste, onde pretende fundar novo reino, sob sua direcção. Isto, no início do século XVII.
“Kinguli chega à região ocupada pelos jaga em Angola e se faz aliado deles; então, adopta o quilombo – campo ritual - para a formação e iniciação, também, de jovens guerreiros estrangeiros, que incorpora ao próprio exército; como resultado, consegue espalhar seu povo por toda a região mbundu depois de 1610, chegando mesmo a fundar novos estados, tais como Kalandula, Kabuku, Holo, Kassanje, etc.
É importante ressaltar que a ampliação do uso do quilombo como campo de iniciação aplicável também à admissão de guerreiros conquistados, dá ao termo a conotação de “associação de homens, aberta a todos, sem distinção de pertencimento a qualquer linhagem”; é com esta conotação que o quilombo passa a ser entendido na diáspora.
“Note-se que a incorporação de guerreiros vencidos ao próprio exército fornece aos jaga duas coisas que lhes faltavam: disciplina e estrutura militares, reunindo consistentemente grande número de estrangeiros no mesmo objectivo – a guerra de conquista; assim, tornam-se eles capazes de derrotar grandes reinos que, de outra forma, poderiam barrar sua expansão. É ainda importante citar: no exército jaga, qualquer elemento – estrangeiro ou não – poderia ocupar posições de comando, bastando, para tanto, mostrar fidelidade, coragem, destaque na guerra, e rígida obediência à disciplina e à hierarquia militar.”
Esta saga do povo imbangala, que é de recordar para conhecer a história dos quilombos e toda a ideologia vodu a ela adrede, introduz-nos em todo o lendário à sua volta. Ainda de acordo com Ademir Barros Santos (ob.cit.) “é possível assumir que o quilombo foi a mais duradoura e efectiva expressão de resistência ao processo escravista, quer no Brasil, quer em qualquer ponto onde a escravidão foi adoptada; isto porque, no quilombo, o escravizado passa de coisa, animal de carga, objeto de exploração e comércio, a gente, readquirindo sua humanidade.
“Note-se que ao escravizado, por sua condição social, não era possível colaborar ou formar parcerias com o sistema dominante: não pode ser meeiro, posseiro, arrendatário - apenas escravo ou, aquilombando-se, homem livre; é possível que, por este motivo, o quilombo persista durante todo o processo escravista: no Brasil, iniciado com Palmares ainda no século XVI, resiste até mesmo durante a abolição; há remanescentes que, em nossos dias, aqui têm protecção constitucional.
“Deduz-se que a instituição quilombo talvez configure o módulo mais representativo de resistência à escravidão, quer por seu alcance territorial, quer por sua longevidade; mais ainda: pelo sentimento político que despertou; isto porque a formação de quilombos não é fenómeno geograficamente localizado, acompanhando sempre o processo escravista, o que leva Clovis Moura a opinar, em História do negro brasileiro, p. 24 – “O quilombo foi [...] a unidade básica de resistência do escravo. Pequeno ou grande, estável ou de vida precária, em qualquer região onde existia a escravidão, lá se encontrava ele como elemento de desgaste do regime servil. O fenómeno não era atomizado, circunscrito a determinada área geográfica [...]. O quilombo aparecia onde quer que a escravidão surgisse. [...]. Muitas vezes surpreende pela capacidade de organização, pela resistência que oferece; destruído parcialmente dezenas de vezes e novamente aparecendo em outros locais [...]. O quilombo não foi, portanto, apenas um fenómeno esporádico. Constituía-se em fato normal da sociedade escravista”. (conclui no próximo post)
Notas:
1. Espártaco foi um célebre gladiador trácio, líder da revolta de escravos na Roma Antiga, conhecida como Terceira Guerra Servil, Guerra dos Escravos ou Guerra dos Gladiadores. Espártaco liderou, durante a revolta, um exército rebelde que contou com quase 100 mil ex-escravos, tendo sido derrotado por Crasso em 70 a.C.
Notas:
1. Espártaco foi um célebre gladiador trácio, líder da revolta de escravos na Roma Antiga, conhecida como Terceira Guerra Servil, Guerra dos Escravos ou Guerra dos Gladiadores. Espártaco liderou, durante a revolta, um exército rebelde que contou com quase 100 mil ex-escravos, tendo sido derrotado por Crasso em 70 a.C.