RIBEIRA GRANDE DE SANTIAGO
(POEMA DE NZÉ DE SANT´Y AGO)*
Lembras -te, Tonecas
das mamães-velhas sentadas
nos portões e nos prelúdios do mundo
das yá-yás exumando
à boca da noite
as estórias da ilha ressuscitada
das mil desgraças das mil atribulações
dos Moradores de Santiago
em constante peleja
contra os reinóis os corsários os piratas
contra os donatários os missionários os capitães-mores
contra os negros fujões os libertos os escravos escassos
contra os governadores os ouvidores os feitores
das companhias majestáticas
contra as taxas os tributos a cobiça d’El -Rei
contra as epidemias as secas as crises cíclicas
contra o império da fé e da espoliação
com a paixão pelo ouro pela mesa
pela cama pelo saque pelo rapto
pelas mulheres negras e mulatas
com a consciência ardendo nos infernos
com o amor ao próximo
conspurcado pelo chicote
pela gula pela lascívia
pela ganância?
Todos nós éramos
excursionistas ocasionais
esporádicos caminhantes
das ruas sobreviventes da Cidade Velha
das suas pedras rumorosas
das suas memórias aterradas
emudecidas pela esmagadora solenidade
da História pátria imperial de Portugal
veiculada nos discursos oficiais nas missas solenes
nas crónicas oficiosas nos livros escolares
nas suas mordaças nas suas máscaras
ocultando as praias as enseadas as gamboas
as baías e os amplos areais da ínsula
nossa primacial baptismal
onde
se persignaram os descobridores da primeira ilha
foram desembarcados os homens e mulheres negros
cativos primeiros das naus negreiras inaugurais
involuntários descobridores da ilha oblonga e sinuosa
dos futuros senhores brancos e brancos da terra
hóspedes forçados da terra sem regresso
do degredo escravocrata
prisioneiros do resignado exílio
dos rostos pretos e pardos
da sua cativa descendência
onde
aportaram os visionários
navegadores portugueses
dos caminhos marítimos
para o Brasil e para outras Américas meridionais
para ambas as Costas de África
para as Terras do Prestes João
para as Arábias para o Extremo Oriente
para outros mundos bárbaros
ainda desconhecidos
da cobiça dos olhos europeus
ainda indemnes à usura
do verbo sagrado adulterado
ainda ilesos à branca erosão
da conquista do saque
do imenso e vário sangue delapidado
nos massacres e nos genocídios
perpetrados pelas criaturas barbudas
chegadas de longínquas e frias terras
emersas dos obscuros horizontes
dos oceanos estrondosos
onde
desembarcaram colonos perplexos
em busca das rotas da fortuna
defraudados com a pobreza
e a ansiosa secura da Terra Prometida
onde
se ouviram os primeiros vagidos
do idioma crioulo dos naturais do cativeiro
onde
acostaram Cripto-Judeus Cristãos Novos
e outros deportados reinóis
punidos por crimes de lesa -majestade
condenados por heresia e blasfémia
contra a Santa Madre Igreja
Católica Apostólica e Romana
onde
se construíram robustas quase inexpugnáveis fortalezas
guarnecidas de canhões regimentos de milícias
e soldados reinóis comandados por Coronéis das ilhas
e Capitães -Generais vindos do Reino
abençoados por sua Santidade o Papa
e Sua Majestade Sereníssima El -Rei
de Portugal e dos Algarves de Aquém e Além -Mar
das Conquistas da Guiné e dos Domínios das Índias
onde
se edificou a reluzente catedral
da primeira diocese católica
da África Ocidental
se inauguraram igrejas capelas
e seminários diocesanos
se consagraram
os seus castiçais de prata
os seus cálices de ouro
os seus riquíssimos altares
as suas místicas ressonâncias
as suas pedras tumulares
as suas naves monumentais
por cujas paredes desfeitas
ainda ecoam
a erudição e os sermões memoráveis
do Padre António Vieira
para a posteridade eternizado
como imperador da língua portuguesa
sapientíssimo perpetuador da humilde sabedoria
de Santo António de Lisboa e Pádua
criador do sacro desígnio do Quinto Império
como vocação futura permanente de Portugal
onde
ainda uivam
impenitentes e infernais imprecações
dos bispos negreiros e polígamos
onde
ainda se ouvem
as homílias crísticas e anti-esclavagistas
de D. Frei Vitoriano Portuense e de outros bispos
e de outros padres frades e missionários humanistas
onde
se assombraram as almas corsárias penadas
de Francis Drake e Jacques Cassard
e de outros piratas
e de outros saqueadores
das riquezas dos senhores das ilhas
e de outros devastadores
dos sustentáculos económicos
do arquipélago
dos sustentos das suas gentes
pobres e remediadas
onde
ainda choram
as preces mudas ajoelhadas
dos escravos [domésticos
suplicando pela salvação
das suas almas ladinizadas
e das almas futuras dos irmãos
que se definhavam nos latifúndios
de Alcatrazes de São Martinho do Laranjo
da Trindade de São João Baptista
e das almas perdidas defuntas
dos irmãos que se calejavam
nas hortas e nas plantações
dos Mosquitos do Pico Vermelho
de São Salvador do Mundo dos Flamengos
de Telhal dos Engenhos de Tabugal de Pombal
e em outros vales regadios e lugares de cultivo
da fortuna e do padecimento
e das almas rebeladas
dos irmãos fugitivos
da clausura escravocrata
refugiados nos quilombos
de Julangue e Monte Negro
acossados nas montanhas e nos vales
de São Domingos do Palmarejo de Santa Cruz
da Boa Entrada de Chã de Tanque
e das almas apaziguadas dos irmãos
que se desassossegavam
na Ribeira Grande em San Filipe na Vila da Praia
e em outros burgos e em outros povoados
onde
rumorejaram ribeiras caudalosas
germinaram sementes
até então desconhecidas
da ilha virgem e inexplorada
se multiplicaram plantas exóticas trazidas
de longínquas terras ultramarinas
vicejaram arbustos e ervas endémicas
apascentaram -se imensas manadas de alimárias
onde
fluíram sangues cativos da terra e da mancebia
edificaram -se sobrados palácios e solares
arderam casebres funcos choças e palhotas
onde
desfilaram procissões multicoloridas
consagradas a Deuses negros clandestinos
devotadas a Deuses brancos severos
a Santos católicos compadres e camaradas
a Santas brancas e belas no esplendor dos andores
onde
se acenderam fogueiras da dança e do ritmo
se ornamentaram os terreiros da reza
se altearam as vozes do finason e do batuco
se estenderam as esteiras do luto
onde
se incandesceram anónimas gestas
dos profetas da compaixão e da liberdade
se edificaram os pelourinhos do martírio
se armaram os altares da flagelação
da dignidade humana dos corpos escuros
de almas excomungadas gentílicas
alegadamente pagãs
se desvendaram os reais e cúpidos desígnios
da sacra aliança entre a cruz e a espada
onde
se sagraram
os galantes gestos da decência
os veementes púlpitos da exigência
os cerimoniosos rituais da discórdia
nas palavras dos Peticionários de 1546
nas sucessivas rogações dos Moradores das ilhas
nos manifestos contra os desmandos
dos mandatários do Rei e dos representantes do Papa
no verbo tempestuoso dos letrados
na improvável predicação de profetas e rebeldes
nos largos da reunião das hostes dispersas do povo
nos lugares de convulsão das vozes esclarecidas dos cidadãos
Todos nós éramos
ribeiras sem fim panos de algodão
sementes de purgueira raízes de urzela
cabeças de alcatrão epidermes de carvão
almas em Cristo Deuses em expiação
Ribeira Grande Ribeira Principal
ribeira do princípio do mundo
coração de catedrais e fortalezas
para onde
navegaram
galeões naus galeras caravelas
mercadores armadores negreiros corsários
para onde
se recolheram em purga e oração
em comunhão com as pedras e as cabras
os cativos e outros sobreviventes das razias
do vómito e da aflição dos porões
por onde
circulara o destino
da outrora opulenta Cidade
da Ribeira Grande de Santiago
da depois esvaída e francamente decadente
Cidade Velha
onde
se engendraram
as muitas vicissitudes
da cidade primeira antiquíssima
da primeira cidade europeia dos trópicos
da primeira cidade negra do Atlântico
da primeira cidade da primeira ilha
da primeira colónia portuguesa
na África subsahariana
da urbe crioula primogénita
da ilha primordial
retintamente caboverdiana
do burgo edificado
como o verde da primeira rocha
onde germinaram e se instruíram
os cónegos negros como azeviche
mas tão doutos tão morigerados
tão bons músicos que faziam inveja
aos das catedrais do Reino
(versão actualizada em 19, 20, 21 e 26 de Abril de 2015)
*Nota: Constitui o presente poema uma versão refundido de um excerto do poema “Praianas -
Revisitações da Cidade e da Saudade (Poema de Nzé de Sant´y Ago)”, constante do livro Praianas -Revisitações do Tempo e da Cidade, de José Luís Hopffer C. Almada