Sairá em Dezembro o novo livro do premiadíssimo poeta santiaguense (e tarrafalense) José Luiz Tavares. A lançar no Fogo, Santiago e São Vicente, terá aqui lugar de destaque de cada vez que houver desenvolvimentos sobre o mesmo.
Com lugar nas letras cabo-verdianas equivalente ao desempenhado por Germano Almeida no campo da prosa, José Luíz Tavares autor de escrita límpida e erudita, brinda-nos desta feita com "Coração de Lava", alusivo ao Fogo e dedicado a Antero de Barros. Resultante de colaboração com Duarte Belo, autor das belíssimas fotografias que ilustram a obra, ela é peça que (mais uma vez) honra o autor e a poesia das ilhas.
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O poeta José Luiz Tavares publicou Paraíso apagado por um trovão (2003), Agreste matéria mundo (2004), Lisbon blues (2008) e Cidade do mais antigo nome (2009).
É provavelmente o poeta mais inusitado que surgiu nas literaturas africanas de língua portuguesa após as independências dos países. Cáustico, irreverente, aliando o classicismo das fontes e o conhecimento vasto da poesia universal ao canto da terra pátria, numa linguagem simultaneamente antiga e moderna, tem uma voz poderosa e altissonante, de uma criatividade completamente fora do habitual, que surpreende pela eloquência e ironia, como se uma raiva profunda chegasse em forma de soneto, domada, feliz, e, paradoxalmente, cuspindo fogo e melancolia.
Por isso, o que poderia parecer uma poética exacerbada, egolátrica, bebendo nas vísceras dos sentimentos e sensações (inadequação à sociedade, insulação, revolta individual, afirmação narcísica, prazer gratuito de chocar, todos os tipos de catarse e expiação), aparece com toda a força de um processo épico de metamorfose da história em matéria de nação e do esforço ético para a desconstrução do sofrimento psíquico: “combatendo a babugem/sou poeta de verso brabo”. Mas um “verso brabo” domado pelo soneto, em que o azul recorrente do arrebatamento romântico, no sentido da liberdade e da procura de vastidão, se associa à vigilante consciência de que “dar brilho aos reflexos é apenas literatura”. Este descer do azul alado dos céus, que exprimia o “horror à normalidade”, e que a busca alquímica da “matéria negra” compensava, para enfrentar, não as “ridentes metáforas”, mas a “pólvora/de muitos medos”, desarmado com um “coração dissonante”, consagra no poeta o “obstinado peso das raízes”.
Pires Laranjeira - professor de Literaturas e Culturas Africanas e investigador do Centro de Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
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A propósito de José Luiz Tavares, ver AQUI entrevista de 14 de Maio de 2012 ao programa "Mar de Letras", da RTP.
Poema inicial do livro
PRELÚDIOS
I.
No princípio era o fogo.
E as mãos do deus sobre a água fervente.
E o poeta com seus poucos dons na cabeça
obscura. E o canto das estrelas alheias
às reticências do destino.
Pousado nas margens como um barco imóvel,
vigia de fiel resfolegar, lá estavas tu,
silencioso colosso para o julgamento do tempo,
sem as evasivas que um corpo quebradiço
oferece ao escrutínio incontroverso da perenidade.
Ainda o lume vivo não se mudara
em fogo frio, à pacatez que embebe
os olhos no mar de aspereza vieram
as máquinas rasgar para que, cumprida
a voz da natureza, outro destino
mais humano ali nascesse:
traziam os construtores para junto
das searas os seus martelos rangentes;
encantados por esse ofício de paciência
viam a posteridade espelhada na pedra
lavrada, com seus sólidos vínculos
atando massa a massa.
Mas tu ergues-te sobre o chão do teu
destino, que eu bem vi prolongar-se
nesse parto de cinzas, esse grito austero
sobre as águas mergulhando num sonho
de catástrofe a minha cabeça de deus mortal,
ali onde a ilha se afunda ao bafo inclemente
de tal colosso, embora sejas a face límpida
que acolhe o peregrino alheio ao pio que incubas
nas entranhas e sagra-se nessa fala trôpega
subindo desde as reentrâncias onde tudo
solicita o afago da nossa terrena angústia.
Com os copiosos dedos assinala-se agora o teu
perímetro sobre os mapas. Vorazmente, os meus
olhos perseguem as curvas do teu destino
no labirinto dos dias descarnados, longe da névoa
dos sentimentos, como convém a um poeta
das pedras, sem os louros da conquista, mas imerso
na veemência com que tudo aqui cita o nascer da vida.